uma carta sobre múltiplos tempos
- marcelaperrote
- 21 de fev. de 2024
- 5 min de leitura
Nesta vida eu já passei por duas remissões espontâneas de quadros complexos de saúde. Em momentos diferentes, circunstâncias diferentes, quadros distintos. Motivações outras. E, ainda houveram outras questões não tão crônicas, mas ainda assim, desafiadoras e que foram superadas. De uma forma pouco linear e convencional. Brinco dizendo que alguma parte minha gosta de desafiar a lei da lógica e do movimento. Logo, algumas leis da física e as leis da matéria.
Estes fatos fizeram com que eu buscasse caminhos outros para me compreender. Quando você se depara com tamanha finitude, você percebe que a dinâmica de tempo, energia e presença é ouro. E lá fui eu, primeiro tentando compreender quem me deu a benção de existir, reconectando fé e a qualidade além. E aí também quis entender o corpo, o cérebro, todo o sistema cognitivo, nervoso, de formação. Era como se eu precisasse decodificar essa máquina que bombeia, faz nascer coisas, mas também morre várias vezes ao dia.
Bem, isso acabou se tornando uma paixão. Virei uma entusiasta, apaixonada pela complexidade desse sistema. Depois que descobri algumas (auto) práticas fui atingida por aquele raio "todo mundo precisa provar". E o que era uma pesquisa pessoal, virou uma promessa pessoal.
Vivendo o meu próprio processo de morte-cura-renascimento, era como se eu quisesse que todo mundo tivesse uma possibilidade de cicatrização, que os caminhos frescos e novos fossem apresentados, que a gente pudesse abrir os olhos em outras direções. Eu queria conseguir subir numa montanha e gritar "ei gente, tem um caminho diferente!".
Ainda nesse assentamento dos meus processos, me vi mergulhada em ampla dedicação estudantil. Fazendo um caminhão de especializações, e tentando imbedar esse bocado de coisas nos meus atendimentos. De repente, lá estava eu, pressionada por coisas que achava "que deveria terminar", e como a rodinha do hamster, girando girando girando.
Estava engatilhada nestes estudos, no mínimo, há 2 anos, e tomar a decisão de parar todas estas especializações foi uma das coisas mais difíceis deste ano. Cá entre nós, já havia me ocupado em tamanho espaço de tempo (finais de semanas seguidos sem vida social, apenas estudando), além de um grande investimento material. Soava ruim.
E por quê eu sentia a necessidade de parar? Afinal, não estava conectado com o meu "senso de propósito maior"?
Foi quando eu entendi que nada adiantava eu querer parir algo para o mundo, se o que era mais precioso, para mim, eu não estava fazendo.
Tem uma frase do Saramago que diz:
"Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo."
Nesta equação, eu estava perdendo tempo legítimo de desfrutar e viver a vida conquistada, pela pressa e sede de colocar o propósito coletivo na frente.
Com esse processo, eu compreendi que não existe um propósito coletivo se ele não está bem fundamentado e formulado na nossa própria existência. É como uma balança.
A gente primeiro precisa SER, para depois TRANSBORDAR.
Isso não significa ficar parado ensimesmado. Mas sim, ter a visão ampla que direciona e busca esse lugar maior, e na rotina diária, no próprio labor, você construir essa direção. Tendo o próprio processo como uma experiência.
Outra coisa que aprendi é que, quando esse fluir é legítimo, não há porque forçar.
Dizer tchau para os conhecimentos e professores que sempre busquei foi esquisito. A minha mente me chamava de "maluca". Mas hoje vejo que foi uma das melhores decisões. Na época, eu não tinha essa clareza. Eu só sentia o chamado de movimento e um sentimento amplo de exaustão.
Percebi, no coração, que quando a "cola" existe, ela seguirá existindo. É como um filme que, num dado momento, tem a sua história dividida em novas linhas temporais, e, num novo momento, elas retecem caminhos. Conexões assim transcendem o tempo. E a vida ensina a confiar nesse entrelaçar que fiz "agora não, mas daqui a pouco, sim".
Não querer apressar o tempo. Viver o tempo mais dilatado, mais enraizado. Com o que é real no agora.
E o que fiz a seguir?
Me entreguei a vida como uma folha em branco. Dada por renascida, renascida serei. Disse até logo para alguns planos, priorizei os desejos pessoais do coração.
E foi quando eu senti, honestamente, a vida finalmente me guiando.
Eu dançando com ela. Escrevi sobre isso no meu aniversário. Este foi um enorme presente. Não precisando desafiar as leis da física e da matéria, como disse no começo desse papo. Isto é, diminuiu a resistência. Atrito. Impacto.
Sabe, a vida não quer da gente perfeição.
Não quer que tenhamos sempre a melhor decisão. Que sejamos sempre asseado e equilibrado. Que estejamos existindo em plena consciência e consistência o tempo todo.
A vida quer que a gente viva.
Como ela é.
Suja, limpa, banal e profunda. Complexa e às vezes tão superficial.
Ela quer que a gente desfrute cada etapa, como podemos ver na natureza. Aproveite o estágio semente, viva lindamente o crescimento, descubra um bocado de coisas no florescimento, e se entregue à renovação ao retornar a terra e soltar todas as suas folhas.
A vida quer que a gente se divirta (cabe aqui lembrar que riso é remédio). Que a gente dance em cima dos pés, lambuze a boca com os sabores que despertam vida.
E que a gente no final, possa repousar a cabeça e amanhã fazer tudo de novo, de um outro jeito, talvez?
Porque o que a vida é, é imprevisto. É movimento. É sempre algo novo.
A vida é imensa.
E o que está em verdade, perdura.
Aqui estão os meus desejos para você semear no agora:
☼ que você faça planos e os conquiste, mas que possa se desfazer de todos eles quando sentir. com o coração corajoso que confia na própria autoridade, e é guiado para onde a sua intuição sopra.
☼ que você brinque e deboche de si mesmo. desfaça das armaduras da vida sobre "ser alguém", e "parecer algo" para a sociedade. principalmente quando algum aspecto não estiver no seu ponto de maturação
☼ que você reconheça as suas grandes motivações e as elabore como uma pintura a ser admirada. isso lembrará o porquê você luta e se movimenta. mas lembra, nenhuma luta é maior do que a dinâmica que você trava diariamente no seu próprio cotidiano. nele que moram as grandes transformações.
☼ que você possa se cansar e chorar, porque isso te lembra o que te faz sorrir e viver. e então, não se identifique com nenhum destes extremos. a vida é movimento. é sempre transformação.
☼ que você tenha afeto para te guiar e conduzir. e lembrar que a vida pode doer, mas ela pode curar.
☼ e que você encontre serenidade na imperfeição. você, na sua ampla complexidade, estará sempre tentando perseverar, melhorar. isso é natural e instintivo. então não frite querendo solucionar tudo no agora.
☼ confia. em você. na mão que conduz. no seu próprio peito. que existe algo que te enlaça.
e por último, que ser você já é um grande presente no contexto maior.
não faça força para chegar neste ideal. enquanto isso, constrói ele diariamente.
com amor,
marcela
**** Este texto foi escrito em maio de 2022 e enviado na mesma época para a lista dos inscritos que recebem as cartas virtuais. Agora, finalmente publicado aqui. ;)
*Esses textos não correspondem a nenhuma opinião do site em si, são apenas elaborações particulares baseadas na minha experiência pessoal e o que absorvo ao viver, construções sempre em tecedura e renovação.
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